Tem sido “lugar comum”, especialmente em
tempos de operações policiais espetaculares e midiáticas, assistirmos
na televisão e lermos nos jornais e revistas que Juízes expediram
“mandados de condução coercitiva” para que investigados fossem levados
por agentes policiais para serem ouvidos na Delegacia de Polícia.
Ocorre que tal procedimento não é
autorizado, sequer, pelo vetusto, autoritário, inquisitorial e fascista
Código de Processo Penal de 1942, pois o art. 260 só autoriza a tal
condução coercitiva se o acusado (ou o indiciado) “não atender à intimação para o interrogatório”,
situação diversa da decorrente de flagrante delito em que o suspeito
pode ser conduzido para autoridade policial (CPP, art. 6º III, V e art.
144, § 4º, da Constituição da República). Aliás, a regularidade da ação
policial tão logo cometido o crime já foi reconhecida pelo Supremo
Tribunal Federal (HC 107.644/SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski)[i], situação diversa da decorrente da espetacularização do Processo Penal (Rubens Casara).
Então, como determinar a condução
coercitiva, desde logo, se o investigado (que, aliás, não foi ainda nem
indiciado formalmente nos termos do art. 2º., § 6º, da Lei nº
12.830/2013) não foi notificado para nenhuma diligência policial? Por
que submetê-lo a esta sanção, a este máximo constrangimento corporal,
simbólico e midiático, se não houve de sua parte qualquer
recalcitrância? Aliás, sequer sabia ele que estava sendo formalmente
investigado.
E vamos mais além. Como se sabe, em
conformidade com os Pactos Internacionais que o Brasil subscreveu –
Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos
Humanos) e Pacto sobre Direitos Civis e Políticos de Nova York – a
ninguém é dado produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere:
“nada a temer por se deter”), o que implica, necessariamente, no
afastamento do art. 260 do Código de Processo Penal, em uma
interpretação conforme a Constituição da República (art. 5º., § 2º).
Ademais, não esqueçamos que o art. 5º.,
LXIII da Constituição declara o direito ao silêncio, do qual é detentor
qualquer cidadão sujeito (de direitos) de uma investigação levada a cabo
por um órgão do Estado. Ora, se ele tem o direito de ficar calado, é
claro que tem também o direito de optar por não comparecer para depor. É
tudo uma questão de tática de defesa que deve ser respeitada. E, mais: o
seu silêncio e a sua ausência, por óbvio, não podem ser levados em seu
prejuízo, pois seria um despautério (do ponto de vista constitucional e
convencional) que o recurso a direitos previstos na Constituição e em
documentos internacionais sobre direitos humanos pudesse causar algum
ônus ao seu beneficiário.
Tampouco, argumente-se que a condução
coercitiva serviria para a qualificação do investigado. Não! Primeiro,
trata-se de um argumento falacioso e tão somente argumentativo (vazio de
qualquer significação). No fundo, no fundo, a intenção é constranger e
forçar que o conduzido fale e, se possível, confesse (tal como os
hereges eram obrigados a fazê-lo na Inquisição) e delate – sob pena de
serem presos preventivamente como, atualmente, (des)aprendemos. Segundo,
a qualificação poderá ser feita, facilmente, pelos meios postos à
disposição das autoridades policiais e judiciárias, mesmo porque, a
qualificação, na esmagadora maioria das vezes, já está sobejamente
demonstrada documentalmente nos autos, quando não é pública e notória.
Talvez a condução sirva como o aviso de que se não falar o que quero, na
próxima rodada, serás preso. A condução é uma forma de constrangimento
simbólico.
Portanto, esta prática, que a cada dia
se torna cotidiana em nosso País, fere a Constituição e os referidos
Pactos Internacionais. Evidentemente, que os Juízes e Tribunais
brasileiros (nem todos, obviamente) cedem a esta “tentação”, muitas
vezes pressionados (ou para agradar aos outros ou a si próprios – Freud
explica!) pela grande mídia. Afinal de contas, trata-se de uma
“reclamação da criminologia midiática”, de que fala Eugenio Raúl
Zaffaroni:
“O poder punitivo não seleciona sem
sentido, e sim conforme o que as reclamações da criminologia midiática
determinam. O empresário moral de nossos dias não é, por certo, nenhum
Savonarola; são a política midiática, os comunicadores, os formadores de
opinião, os intérpretes das notícias que acabam de comentar a disputa
entre moças de biquíni para passar a reclamar a reforma do código penal.
Evidentemente, por detrás deles se encontram os interesses conjunturais
das empresas midiáticas, que operam segundo o marco político geral,
quase sempre em oposição a qualquer tentativa de construção do Estado
social e, regra geral, com interesses justapostos aos de outras
corporações ou grupos financeiros, dado o considerável volume de capital
que controlam. Por outro lado, a criminologia midiática se entrincheira
em sua causalidade mágica e nem sequer admite que alguém suspeite de
seu próprio efeito reprodutor do delito funcional do estereotipado, que
lhe é imprescindível para sustentar sua mensagem e infundir o pânico
moral. De fato, não há dúvida de que o reproduz.”[ii]
É uma pena que os atores processuais e a
doutrina nacional tenham se acostumado (e se calado, em sua maioria, ao
menos) com esta prática judicial consistente na expedição de mandados
de condução coercitiva em relação a investigados desprovido de
fundamento legal. No atual ordenamento processual penal brasileiro, tal
proceder só é possível se houver desobediência da testemunha e da
vítima, nos exatos termos dos arts. 218, 219 e 201, do Código de
Processo Penal, ou ao conduzido na modalidade de flagrante delito, sob
pena de grave violação da Constituição Federal e dos Pactos
Internacionais. É preciso que o Supremo Tribunal Federal seja
urgentemente acionado para que cesse esta prática odiosa, em sede de
controle difuso de constitucionalidade (ou mesmo de convencionalidade),
porque a invocação do Habeas Corpus n. 107.644-SP, como legitimador da
prática é um engodo. Por fim, com alguns defendendo a investigação pelo
Ministério Púbico e mesmo pela Polícia Militar, em breve, a condução
coercitiva será determinada em situações inimagináveis. Logo, condução
coercitiva de investigados é abusiva e ilegal.
Notas e Referências:
[i] Destacamos da ementa: “I – A própria Constituição Federal assegura, em seu art. 144, § 4º,
às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, as
funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais. II – O
art. 6º do Código de Processo Penal,
por sua vez, estabelece as providências que devem ser tomadas pela
autoridade policial quando tiver conhecimento da ocorrência de um
delito, todas dispostas nos incisos II a VI. III – Legitimidade dos
agentes policiais, sob o comando da autoridade policial competente (art.
4º, do CPP), para tomar todas as providências necessárias à elucidação
de um delito, incluindo-se aí a condução de pessoas para prestar
esclarecimentos, resguardadas as garantias legais e constitucionais dos
conduzidos.”
[ii] ZAFFARONI, Eugênio Raul. A Questão Criminal, Rio de Janeiro, Editora REVAN, 2013, 1ª reimpressão 2015, p. 211.
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